“Retalhos de uma vida” é a primeira obra literária da
apresentadora e jornalista moçambicana Eunice Matavele, que fora nos últimos
dois dias meu companheiro de cabeceira. Lançado no último mês de Setembro, o
livro conta historias vividas pela autora como activista do HIV/SIDA e
sobretudo como apresentadora e editora de um programa na Televisão de Moçambique,
denominado “Defesa da vida” cujo objectivo era trazer contos, testemunhos,
anseios e o dia-a-dia das pessoas infectadas e afectadas pela pandemia do HIV.
Graficamente, Eunice traz nesta obra vivências e momentos
diversificados por diferentes pontos desta pérola do Índico, com pessoas
seropositivas e instituições vocacionadas a esta temática. Para além do conteúdo
rico em volta deste “bebé” literário, algo mais me motiva a tecer estes comentários.
Sempre achei a sociedade em que estou inserido imbuída de
senso comum e bastante sensacionalista, razão pela qual boatos e fofocas
encontram-na bom aconchego. Porém, confesso que não tinha a tamanha dimensão dos
preconceitos que envolvem o nosso dia-a-dia nesta “pátria amada”.
Nas histórias contadas por Eunice Matavele, saber que ela
fora socialmente considerada seropositiva pelo simples facto de apresentar um
programa televisivo sobre SIDA, deixou-me completamente arrepiado e bastante incrédulo.
Com esta obra, por um lado aprendi muito sobre o HIV, mas também por outro decepcionei-me
com a minha sociedade, ao saber que os efeitos sociais são maiores que os da própria
doença, deixando impressão de que ou as diversas organizações versadas a ela não
estão a tomar conta do recado como deveriam, ou os moçambicanos continuam
renitentes a mudança comportamental.
É incrível que em pleno 2013, exista ainda confusão entre
seropositivo e doente de SIDA, e que pessoas sejam julgadas serologicamente por
simples aparências! Acho eu que os moçambicanos não entenderam ainda o quão é realístico
o HIV no nosso país, alias a forma como este assunto é tratado nos diferentes fóruns
sociais revela este facto.
Lembro de uma vez num transporte semi-colectivo, um dos
passageiros que conversava com sua acompanhante em voz alta como é hábito, ter
dito algo mais menos assim “… aquele tem SIDA…eh, você, SIDA mata…”. Ao ouvir
aquilo, a primeira questão que me veio a cabeça foi: qual seria sentimento de
um infectado que provavelmente estivesse por ai?
Por meio deste e outros episódios que tenho presenciado, percebo
e concluo que algo devia ser mudado na nossa sociedade na forma como encaramos
esta doença. Este comportamento menos digno por parte de algumas pessoas, justifica
as desistências aos tratamentos ante-retrovirais, a auto-descriminação e
consequente exclusão social quando as pessoas já estão infectadas, assim como também
o pouco interesse e medo pelos testes voluntários.
Que comportamento se espera de um individuo que descobre
que está infectado, mas que vivia descriminando e falando mal dos seropositivos?
Portanto, “Retalhos de uma vida” aparece num momento
oportuno, é para mim uma obra educativa, e sendo a autora mestre em saúde
pública, imaginem o quão rico este livro é! Pelo que é uma recomendação obrigatória
a todos moçambicanos, e que façam dos seus ensinamentos o dia-a-dia de cada um
rumo ao Moçambique livre da estigmatização.
Bem-haja Eunice Matavele.